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domingo, 17 de junho de 2012

Eutimia





A palavra grega Eutimia significa equilíbrio do humor (eu=normal; timo=humor). A partir da última CID (Classificação Internacional das Doenças) aparece o termo Distimia (dis=alteração) classificado como um dos tipos de Transtorno Persistente do Humor, onde a principal característica é a tendência constitucional do paciente em viver sob uma tonalidade afetiva tendendo à depressão, durante a maior parte do tempo. Por isso está incluída nos transtornos ditos Persistentes.

Saber exatamente quando o termo Eutimia aparece na história dos sintomas humanos é difícil mas, na obra do filósofo romano Sêneca (4aC-65dC) podemos ter uma idéia da importância do equilíbrio do humor na vida das pessoas.

Em A Tranqüilidade da Alma, Sereno pede à Sêneca uma orientação sobre importante questão existencial, uma espécie de inconstância da alma que o incomodava. Sêneca responde que "o objeto de tuas aspirações é, aliás, uma grande e nobre coisa, e bem próxima de ser divina, pois que é a ausência da inquietação.

Os gregos chamam este equilíbrio da alma de "euthymia" e existe sobre este assunto uma muito bela obra de Demócrito. Eu o chamo "tranqüilidade" pois é inútil pedir palavras emprestadas para nosso vocabulário e imitar a forma destas mesmas: é a idéia que se deve exprimir, por meio de um termo que tenha a significação da palavra grega, sem no entanto reproduzir a forma."

Portanto, pode ter sido esta uma das primeiras vezes que a psiquiatria conheceu a palavra Eutimia, para a qual Sêneca encontra como correspondente latino a idéia de tranqüilidade ou a ausência de inquietação.

Em seguida, Sêneca diz o que entende por tranqüilidade "Vamos, pois, procurar como é possível à alma caminhar numa conduta sempre igual e firme, sorrindo para si mesma e comprazendo-se com seu próprio espetáculo e prolongando indefinidamente esta agradável sensação, sem se afastar jamais de sua calma, sem se exaltar, nem se deprimir. Isto será tranqüilidade".

Nesta afirmativa, definitivamente Sêneca considera a Eutimia (ou sua tranqüilidade) como um estado de espírito equilibrado, entre sem se exaltar, sem se deprimir e sem se afastar da calma. Essa idéia de equilíbrio sensato deve ter sido baseado na definição de Aristóteles sobre a virtude, que para ele era a eqüidistância entre dois vícios, um por excesso e outro por falta.

Sêneca descreve pessoas vitimadas pela inconstância do humor, portanto, pessoas que se afastam da Eutimia, como se fosse um discurso atual, mostrando que os estados emocionais que angustiam atualmente o homem moderno não são, definitivamente, monopólio de nosso tempo.

"Para todos os doentes o caso é o mesmo: tanto tratando-se daqueles que se atormentam por uma inconstância de humor, seus desgostos, sua perpétua versatilidade e sempre amam somente aquilo que abandonaram, como aqueles que só sabem suspirar e bocejar. Acrescenta-lhes aqueles que se viram e reviram como as pessoas que não conseguem dormir, e experimentam sucessivamente todas as posições até que a fadiga as faça encontrar o repouso: depois de ter modificado cem vezes o plano de sua existência, eles acabam por ficar na posição onde os surpreende não a impaciência da variação mas a velhice, cuja indolência rejeita as inovações. Ajunta, ainda, aqueles que não mudam nunca, não por obstinação, mas por preguiça, e que vivem não como desejam, mas como sempre viveram."

Vemos claramente neste texto os atuais tipos psicológicos dos depressivos clássicos, que amam aquilo que abandonaram, os deprimidos ansiosos, que se viram e reviram, os distímicos mal adaptados que rejeitam inovações e não suportam o amadurecimento e os depressivos introvertidos, apáticos por natureza. Não há espaço para transcrever tanto de Sêneca, mas apenas mais um trecho, onde diz:

"Há, enfim, inúmeras variedades do mal, mas todas conduzem ao mesmo resultado: o descontentamento de si mesmo. Mal-estar que tem por origem uma falta de equilíbrio da alma e das aspirações tímidas ou infelizes, que não se atrevem a tanto quanto desejam, ou que se tenta em vão realizar e pelas quais nos cansamos de esperar. É uma inconstância, uma agitação perpétua, inevitável, que nasce dos caracteres irresolutos..."

De fato, falando dA Tranqüilidade da Alma, Sêneca fala do perfil afetivo da personalidade e das alterações humorais que afligem os portadores de transtornos afetivos. Se o sentido atribuído por Sêneca à tranqüilidade está claro, que sentido ele atribuía à Alma?

Vinte séculos depois de Sêneca, Karl Jaspers também entendia a Alma humana como sendo o atributo mental responsável pela consciência existencial do ser e da realidade. É a parte sublime e sensível de nosso ser, a parte que transcende o objeto, a parte que abstrai e vai além do significado simples das coisas, diz respeito mais ao significante e ao subjetivo que ao significado e objetivo. Na realidade, percebemos a vida pelos órgão dos sentidos (senso-percepção) mas, de fato, sentimos a vida através da Alma.

Em termos qualitativos poderíamos avaliar a Alma da mesma forma como avaliamos a qualidade da consciência e, entre tantas variáveis que influem na qualidade da consciência, teríamos de destacar também as disposições individuais que caracterizam a maneira das pessoas representam o mundo e a si próprias. Dependendo da maneira como nossa consciência representa a existência, nossa e do mundo, reagiríamos emocionalmente vivendo dessa ou daquela maneira. Mesmo sobre predisposições Sêneca alertava para a necessidade de "examinar se nossas disposições naturais nos tornam mais aptos para a ação ou aos trabalhos sedentários e à contemplação pura".

No âmago da questão vivencial, vamos concluir que nossa existência é sentida mais pelas representações que temos de nosso mundo e pelos sentimentos desencadeados por essas representações, do que da vida e do mundo em si mesmos. Assim sendo, a responsabilidade por nossos sentimentos não pode recair exclusivamente sobre o teor dos fatos, objetos e acontecimentos. Esses sentimentos dependem fortemente da Alma do sujeito que vivencia tais acontecimentos, dependem daquilo que esses acontecimentos representam exatamente ao sujeito.

Uma flor pode representar algo diferente para diferentes pessoas, representações que ultrapassam o significado do simples objeto flor; pode representar um mimo comemorativo, uma paixão, uma mercadoria comercial, um objeto de estudo científico...

De modo geral podemos dizer que o valor representativo dos objetos (o significante das coisas), nasce e flui do sujeito em direção ao objeto e não ao contrário, como somos levados a crer. Os acontecimentos podem estimular sentimentos diferentes em diferentes pessoas; um selo perdido, por exemplo, pode estimular sentimentos diferentes entre um filatelista e um botânico, assim como a morte de uma árvore terá representações diferentemente entre os dois. Quando temos consciência de que estamos tomando algum medicamento, seu efeito pode não depender apenas do real valor terapêutico do mesmo, dependerá também daquilo que o medicamento representa para o sujeito.

Sendo a Eutimia o equilíbrio do humor (ou equilíbrio afetivo), podemos considerar que, neste estado, a consciência da realidade vivida se acompanharia de sentimentos equilibrados, nem exaltados e nem deprimidos, portanto, como queria Sêneca, com tranqüilidade. Dessa forma, Tranqüilidade da Alma será um estado ou uma certa disposição de nosso espírito (ou consciência) para com a vida, de forma a atribuirmos para as coisas e para os fatos da vida valores compatíveis com nosso bem estar.

No ser humano a relação entre a consciência e o sentimento é tão íntima que, à cada consciência deve corresponder, obrigatoriamente, algum sentimento. A neurociência tem se esforçado em explicar o aspecto neurológico da consciência, sendo o modelo das assembléias neuronais um dos mais creditados atualmente. Segundo esse modelo, os neurônios são capazes de se associarem rapidamente, formando grupos (assembléias) funcionais para realizarem uma determinada tarefa. Uma vez que esta tarefa esteja terminada, o grupo é dissolvido e os neurônios novamente ficam aptos a se engajarem em outras assembléias para cumprirem uma nova tarefa e assim, continuamente, as consciências vão se sucedendo . Evidentemente os sentimentos vão acompanhando as consciências que temos da nossa realidade.

A dúvida (entre muitas) que os psiquiatras experimentam é acerca da valorização emocional e pessoal dessa consciência. Seria a atribuição da Alma de valorizar tudo aquilo que é vivido, simultânea ou posterior à consciência que se tem do vivido? Em termos mais neurocientíficos, os sentimentos seriam anteriores, simultâneos ou posteriores às assembléias neuronais constituídas?

Se nossos sentimentos, sejam eles de alegria, tristeza, prazer, ansiedade, angústia, medo, tédio, júbilo, etc., fossem simples respostas de nosso afeto à sucessão de fatos e acontecimentos da realidade, então seríamos levados à crer que tais sentimentos seriam simultâneos ou posteriores e proporcionais à consciência que temos da realidade. Se isso fosse verdade haveria obrigatoriedade em experimentarmos sentimentos agradáveis em resposta aos estímulos (consciências) agradáveis e, inversamente, sentimentos desagradáveis aos estímulos desagradáveis.

Mas não é isso que se observa na clínica. Há pessoas que, ao tomarem consciência do vivido, podem experimentar sentimentos depressivos, angustiosos ou ansiosos, de forma quase totalmente emancipada do valor objetivo dos fatos, objetos e eventos. Essa não-concordância dos sentimentos aos acontecimentos explica porque uma promoção profissional, por exemplo, para alguns é recebida com sentimentos de satisfação e para outros com sentimentos de medo ou de desespero. Também poderia responder porque o nascimento de um filho pode ser acompanhado de grande alegria, de angústia patológica ou depressão pós-parto, dependendo da pessoa que vive esse acontecimento.

Teriam, essas pessoas que não gozam da Eutimia, que não gozam da tranqüilidade da Alma, disposições afetivas específicas para que a consciência do vivido já se lhes apresentasse predominantemente de modo sofrível, temerário ou negativo? Assim sendo então, e parece ser, disporíamos de sentimentos prévios, ou matizes sentimentais prévias, anteriores à assembléia neuronal (consciência) e à espreita do quer que tomássemos conhecimento consciente para, independente do valor objetivo daquilo conscientizado, colorir à essa consciência com sentimentos predispostamente delineados.

Trazendo tão complexo tema para a simplicidade da cultura popular, poderíamos fazer a mesma indagação perguntando se "é a situação que faz o ladrão ou se, de fato, o ladrão já está feito e esperando o melhor momento para roubar?"

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